segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

NEI LOPES, CHICO BUARQUE, O SAMBA: EXERCÍCIO DE LEITURA...


Em meados de outubro de 2010, no dia em que os mineiros chilenos eram resgatados de seu prolongado cárcere subterrâneo, saí de casa, rumo a Cabo Frio, para participar como membro organizador das Tardes Literárias dentro da Festa Portuguesa, evento turístico naquele município. Naquele dia, tive a oportunidade de ser levado à Região dos Lagos no mesmo carro que um dos palestrantes, o intelectual brasileiro Nei Lopes.
Morador de Seropédica, município da baixada fluminense, sede da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, instituição na qual trabalho desde março de 2010, o carioca nascido e criado no bairro do Irajá brindou-me com uma agradável conversa, nas quase duas horas em que viajamos juntos entre as duas cidades fluminenses. Nei Lopes é o tipo de pessoa capaz de falar horas seguidas sobre os mais variados assuntos, sem ser repetitivo. Numa ocasião, assisti a uma aula sobre cultura negra por ele ministrada ao longo de uma manhã e uma tarde de sábado. No final, nenhum cansaço! Foi um sábado digno daquilo que uma aula deve realmente ser...
Depois da conversa na viagem, houve o almoço e mais tarde a palestra, sobre a influência do samba na sua literatura, e o café na manhã seguinte antes de seu regresso à casa. Em nenhuma das oportunidades, repito, cansei-me de ouvi-lo, pois a conversa é sempre fluente, as informações sempre novas. À noite, numa interessante mesa com o professor André Valente da UERJ, Nei afirmou ser a Bossa Nova uma das marcas da cultura brasileira no exterior e que o referido movimento musical brasileiro é nada mais que uma ramificação do samba. Assim atestam, por exemplo, os inúmeros títulos de canções da Bossa Nova que têm a palavra “samba” (do avião, de uma nota só...) contidas no seu título. Feliz constatação!
Pois bem. Guardemos a informação. Encerrada as eleições de 2010 havia não mais que dez dias, pego-me lendo numa revista semanal de ampla circulação no país há mais de 40 anos e me deparo, na seção “panorama”, com um quadrinho em que são listados semanalmente um “sobe e desce”. O que é isso? O leitor desavisado, ou pouco competente no ato de ler, como é infelizmente a realidade da maioria dos brasileiros, certamente suporá que o “sobe” contém o que houve de positivo na semana e que o “desce” registra o contrário. Tiremos nossas conclusões...
O “desce” daquela semana foi para a câmara dos deputados por ter concedido (transcrevo) “a Medalha Mérito Legislativo a João Pedro Stedile, líder do MST, a organização criminosa que promove terrorismo no campo”. Vai também para Franklin Martins, que - “ótima notícia para a verdade” – deverá ficar fora do governo Dilma e, por fim, para a maconha, cuja legalização foi rejeitada em plebiscito na Califórnia...
Já o “sobe” mencionava o nadador Thiago Pereira, ganhador da Copa do Mundo de Natação em piscina curta, e as reservas internacionais, que atingiram o maior valor da história. Por fim, a nota que mais me chamou a atenção. O alvo? Francisco Buarque de Hollanda.


Como Nei Lopes, Chico é um intelectual, brasileiro e carioca. Consagrado na música popular brasileira, como cantor e compositor, enveredou há muito tempo pelos caminhos literários e vem pouco a pouco sendo reconhecido como escritor. Nisso, as trajetórias das duas personalidades da cultura brasileira convergem. Divergem talvez apenas pelo fato de Nei Lopes, além de ser cantor, compositor e escritor, como Chico, ter formação jurídica e ser hoje um profícuo pesquisador autodidata da história da cultura negra, tanto no Brasil, quanto em toda a diáspora negra principalmente na América e também na chamada “antiguidade da África”.
Não é, no entanto, de Nei Lopes que me ocupo aqui. Nem é exatamente de Chico Buarque, senão da frase que o colocou no “sobe” daquela semana:

“Os jurados ainda nem se reuniram, mas já está tudo armado para o sambista carioca, autor do enredo Leite Derramado, ganhar o Prêmio Portugal Telecom no dia 8”.

A frase afirma “metaforicamente” que Chico Buarque “subia” naquela semana, não pelo prêmio Jabuti que conquistou havia alguns dias, muito menos pelo que representa para a história da cultura brasileira, mas pela “armação” (o termo provém do próprio texto) em nível internacional que faria com que o brasileiro ganhasse o prêmio português.
Prefiro ler, a partir dessa, outra mensagem, subliminar ao texto publicado. A conclusão a que chego é que (desastradamente?) foi veiculado um conteúdo ideológico no mínimo conservador (e míope – certamente não pelo seu conservadorismo), que acaba por (involuntariamente?) reforçar um pensamento preconceituoso a respeito das raízes da cultura popular brasileira.
Vamos lá. No texto, Chico é o “sambista carioca”, aquele mesmo, frequentemente associado à malandragem, sinônimo de improdutividade e de banditismo, quase sempre afrodescendente. São os velhos lugares comuns tão presentes numa certa mentalidade brasileira. Retorno a Nei Lopes para observar que o efeito pejorativo que o epíteto “sambista carioca” poderia emprestar à figura de Chico sai pela culatra. Por sua ligação com a Bossa Nova e com a própria MPB (ninguém precisa gostar dos movimentos musicais para perceber isso), Chico Buarque pode sim ser considerado um sambista. Curiosamente, não é a palavra “sambista” que vem à cabeça do senso comum quando se escuta o nome de Chico Buarque.
No entanto, se ele fosse apenas sambista, já seria uma maravilha, uma grande demonstração de afinidade com a cultura popular brasileira, ainda mais por ter ele a origem familiar que tem. Ora, ao referir-se ao músico como “sambista carioca”, autor de um “enredo” a ser premiado por uma manobra seja lá de que natureza, o texto apresenta todo o seu desprezo velado pela importância do samba e de toda a cultura popular desenvolvida por afrodescendentes ao longo do século XX, especialmente no âmbito da cidade do Rio de Janeiro.
O próprio termo “enredo”, utilizado como sinônimo de história contada, ficção, livro, soa-me como uma alusão depreciativa àquilo que fez com que um dos maiores fenômenos da cultura popular brasileira ganhasse a importância que têm hoje: as escolas de samba. Sim, porque são elas que anualmente desenvolvem na avenida um enredo, em um espetáculo único, conjugando artes plásticas, música, poesia e dança, que só se completa no seu todo durante o desfile. Não há como não constatar que, à semelhança do que ocorre com o boi no Amazonas, reunir milhares de figurantes, para contar uma história em pouco mais de uma hora de desfile, por meio da música e da dança, com um conjunto de pessoas que não se conhecem e muito pouco ensaiaram para que todo o espetáculo se dê por completo exclusivamente no momento do desfile, é algo extraordinário. Qualquer pessoa que conheça conceitos teóricos mínimos de literatura consegue perceber, em um desfile de escola de samba, toda a complexidade que envolve a representação mimética da realidade, como ocorre na literatura e em outras artes como o teatro, o cinema, a ópera.
Repito: parece-me inócuo tentar associar pejorativamente a imagem do escritor Chico Buarque a outras imagens como a do “sambista carioca”, pois isso só agrega valor à figura de um intelectual que há décadas demonstra o valor que tem.
Vamos talvez fazer de conta que não nos demos conta de que as associações feitas entre “sambista” e “malandro” ou “bandido” apontam em última instância para as imagens ainda pejorativamente correlacionadas à figura do próprio afrodescendente brasileiro.
De fato Chico Buarque ganhou o prêmio da Portugal Telecom dias após a publicação da revista. No entanto, se havia suspeita de que algo seria “armado”, como se afirma no caso do prêmio português, era melhor que se tivesse feito uma matéria jornalística a respeito disso...

Cláudio Capuano
(imagens da internet)

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Professor Leodegário de Azevedo Filho: pequena homenagem


Soube por acaso ao longo dessa semana, que faleceu, no Rio de Janeiro, em 30/01/2011, o emérito de Literatura Portuguesa da UERJ, o professor Leodegário Amarante de Azevedo Filho.
Para os que estudaram Letras na UERJ nos anos 70, 80 ou 90, o nome do professor, e os eventos literários por ele realizados a cada ano, sempre em julho, por mais de três décadas, é bem conhecido. Para a comunidade das Letras brasileira e portuguesa também. No entanto, pouco se noticiou sobre o desenlace do camonista de 83 anos.

Depois que soube da notícia, lembrei-me de um amigo, professor e poeta “carioca de Arraial do Cabo”, e de uma história que ele me contou há tempos. Aluno do Leodegário nos anos 50 (acho), no Colégio Pedro II, o então “pupilo” admirou-se da constatação de que o Bocage de quem falava o mestre era o mesmo das piadas pornográficas... Pedi-lhe então um poema, um soneto, à moda de Camões. Pedido atendido, poema publicado neste blog, na primeira postagem de 2011! Valeu, Eraldo!


AO MESTRE
Eraldo Mai

Leodegário Amarante de Azevedo
Filho (completo nome), o professor
Que em sua diligência e todo o amor
Fez-me de Português jamais ter medo.

Muito ao contrário, desde muito cedo,
Despertou-me das letras o pendor,
Pela do Lácio a derradeira flor
O gosto, porque a via qual folguedo.

Lembra-me vivo sempre aquele dia
Em que, ginasiano, eu me encantava
Com o professor que a nós poemas lia.

Ouvi-lo ler Camões (que tanto amava)
Era pra mim motivo de alegria
E em mim mundos de sonhos despertava