terça-feira, 6 de julho de 2010

Ainda sobre a morte de José Saramago - nota sobre a nota da Revista Veja


José Saramago faleceu numa sexta-feira, dia 18 de junho de 2010. No dia seguinte, chegou aos assinantes a edição 2170, com uma nota sobre a morte do escritor. Se, por um lado, a rapidez com que o fato foi noticiado pela revista é notável, por outro o tom do texto soou-me inadequado e até mesmo desrespeitoso, principalmente nas suas últimas linhas... Escrevi uma carta à revista, que obviamente não foi publicada. Transcrevo:

Achei louvável Veja ter conseguido incluir na edição desta semana, praticamente um dia após a seu desenlace, nota sobre o falecimento de José Saramago. Acredito, no entanto, que o único prêmio Nobel de Literatura em Língua Portuguesa mereça, para a próxima edição, uma matéria mais completa. Aproveito a oportunidade para apontar equívocos e comentar alguns pontos da nota publicada na edição 2170.

Saramago utilizou a História como matéria de criação literária. Não fez “revisão histórica” pelo simples fato de não ter sido historiador. O ano da morte de Ricardo Reis não é um tributo a Fernando Pessoa. É um romance que tem tanto o poeta quanto seu heterônimo como personagens ficcionais, em criações até bastante discutíveis. O livro trata do ano de 1936 em Portugal, mais exatamente do final de 35 ao final de 36, ou ao período que vai da Intentona Comunista no Brasil à Revolta dos Barcos em Portugal. O ano de 36 corresponde a um momento em que o regime fascista português, sob o comando de Antônio Salazar, é acirrado. O fascismo em Portugal se extenderia até 1974 (quase trinta anos após a queda de Hitler e Mussolini). Aliás, Levantado do Chão dá conta do horror que foi o totalitarismo de direita em Portugal, por quase 50 anos. É, portanto, tão “histórico” quanto os títulos citados.

É um reducionismo crítico aludir a livros como O Evangelho segundo Jesus Cristo e Caim como meras “provocações com a religião”. Ambos são romances ditos “históricos”. O tema de fato lhe era caro, tanto que o tratou também em peças como In Nomine Dei e A segunda vida de Francisco de Assis. Se a igreja se sentiu provocada por uma visão outra apresentada sobre suas próprias contradições, isso não era exatamente um problema do autor, muito menos dos seus leitores.

Injusto também me parece com inúmeros autores de língua portuguesa atribuir a ele a quase exclusividade de ter criado “estilo particular e inconfundível” na literatura. Esquecendo os inúmeros autores já falecidos, pode-se citar, entre os vivos, sem maior dificuldade, um de cada continente: Lobo Antunes, Mia Couto e Ariano Suassuna!

Por fim, Saramago sempre se apresentou como comunista, o que, aliás, era um direito seu ou de qualquer cidadão em um mundo democrático. Apesar de ter rompido com Fidel Castro há alguns anos, por discordar de atitudes totalitárias do regime cubano em relação a jornalistas, Saramago foi, como vários outros intelectuais em uma determinada época, um entusiasta das tentativas de implatação do socialismo no mundo. Tais posicionamentos são datados e foram constantemente revistos e repensados pelo escritor. Se era um “Senhor Polêmica”, assim o foi por ter coragem de “pôr o dedo nas feridas”, fossem elas religiosas, políticas ou sociais.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Sobre a vida (e a morte) de José Saramago

Seria fácil dizer que no dia 18 de junho de 2010 a Língua Portuguesa amanheceu mais pobre, talvez menos criativa, pois morrera em Lanzarote um de seus maiores expoentes literários. De fato, José Saramago, único prêmio Nobel de Literatura da nossa língua, pode ser colocado lado a lado com nomes como Camões, Garrett, Eça, Pessoa, Machado, Guimarães, Clarice, e os mais recentes, africanos, Mia Couto, Pepetela, Luandino, entre tantos outros... No entanto, se é fato que a partir de agora, dele só nos restam releituras e a espera por inéditos e dispersos, por outro fica a certeza de que somos privilegiados por termos tido, em nossa língua, alguém que, além de ter mexido com as formas tradicionais de narrar, de articular o discurso, ainda soube tratar de temas do passado, tendo em vista sempre reflexões sobre o presente.
Poderíamos, parafraseando Drummond (sobre a morte de Cacilda Becker), dizer que “morreram” José Saramago. Mas não: os Mau-Tempo, de Levantado do Chão, Baltazar e Blimunda, do Memorial, e Lídia, Marcenda e Ricardo Reis, e Maria Sara e Raimundo Silva, junto com Ouroana e seu soldado, e Camões, Ana de Sá e Francisca de Aragão, e todos os sem nome de Ensaio sobre a cegueira, e ainda, num salto para a frente, Caim, e noutro para trás, o próprio Jesus Cristo, todos, personagens de José Saramago, permanecerão ali, orgulhosos em páginas sempre prontas para serem lidas, páginas escritas por um filho e neto de analfabetos.
Autor até certo ponto bissexto, Saramago escreveu inúmeros romances, mas também passou pela poesia, pelo conto e pelo teatro. Mais que isso, tornou-se célebre nas últimas décadas, por declarações polêmicas, muitas vezes irônicas, quase sempre dirigidas à igreja, ateu e comunista que foi. Agora, como mais ou menos disse, pela voz de papel do seu Camões-personagem, tudo enfim que nos resta (e isso não é nada pouco), são papeis...
Fui aos papeis, aos meus livros anotados e encontrei palavras que, essas sim, exprimem parte do que pode ser dito por elas. As palavras do escritor...

Quem sabe se a cegueira não seria preferível à visão agudíssima do falcão instalada em órbitas humanas?” (Manual de Caligrafia e Pintura, 1977)

As palavras não dizem tudo quanto é preciso” (“São Asas”, em: Deste Mundo e do outro, 1971)

Deveria isto bastar, dizer de alguém como se chama e esperar o resto da vida para saber quem é, se alguma vez o saberemos, pois ser não é ter sido, ter sido não é será... (Memorial do Convento, 1982).

Além da conversa das mulheres, são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita (Memorial do Convento, 1982)

Mas são também os sonhos que fazem uma coroa de luas, por isso o céu é o resplendor que há na cabeça dos homens, se não é a cabeça dos homens o próprio e único céu (Memorial do Convento, 1982)

“... a morte é a suma razão de todas as coisas e sua infalível conclusão, a nós o que nos ilude é esta linha de vivos em que estamos, que avança para isso a que chamamos futuro só porque algum nome lhe havíamos de dar, colhendo dele incessantemente os seres velhos a que tivemos de dar o nome de mortos para que não saiam do passado” (A jangada de pedra, 1986)

Mas é na última frase, do último livro publicado, Caim, que lemos: “A história acabou, não haverá nada mais que contar.” Não. A história não acabou, nem para nós, leitores, nem para o escritor, que não passará (nem passarinho!). O que talvez Saramago tenha legado aos futuros escritores é o desafio de dizer, dizer sempre. Seja por meio de um estilo inovador, como foi o seu, sobretudo na prosa, seja pelas formas mais convencionais. Porque a própria vida é o manancial de histórias a serem contadas e recontadas.
E aqui, do lado de cá do oceano, onde também floresce a cada dia a nossa língua portuguesa, aqui, onde nem o mar acaba, nem a terra principia, “...acaba-se a exaltação, fica a melancolia” (Memorial do Convento, 1982).

Seropédica, RJ, 23 de junho de 2010.