segunda-feira, 5 de julho de 2010

Sobre a vida (e a morte) de José Saramago

Seria fácil dizer que no dia 18 de junho de 2010 a Língua Portuguesa amanheceu mais pobre, talvez menos criativa, pois morrera em Lanzarote um de seus maiores expoentes literários. De fato, José Saramago, único prêmio Nobel de Literatura da nossa língua, pode ser colocado lado a lado com nomes como Camões, Garrett, Eça, Pessoa, Machado, Guimarães, Clarice, e os mais recentes, africanos, Mia Couto, Pepetela, Luandino, entre tantos outros... No entanto, se é fato que a partir de agora, dele só nos restam releituras e a espera por inéditos e dispersos, por outro fica a certeza de que somos privilegiados por termos tido, em nossa língua, alguém que, além de ter mexido com as formas tradicionais de narrar, de articular o discurso, ainda soube tratar de temas do passado, tendo em vista sempre reflexões sobre o presente.
Poderíamos, parafraseando Drummond (sobre a morte de Cacilda Becker), dizer que “morreram” José Saramago. Mas não: os Mau-Tempo, de Levantado do Chão, Baltazar e Blimunda, do Memorial, e Lídia, Marcenda e Ricardo Reis, e Maria Sara e Raimundo Silva, junto com Ouroana e seu soldado, e Camões, Ana de Sá e Francisca de Aragão, e todos os sem nome de Ensaio sobre a cegueira, e ainda, num salto para a frente, Caim, e noutro para trás, o próprio Jesus Cristo, todos, personagens de José Saramago, permanecerão ali, orgulhosos em páginas sempre prontas para serem lidas, páginas escritas por um filho e neto de analfabetos.
Autor até certo ponto bissexto, Saramago escreveu inúmeros romances, mas também passou pela poesia, pelo conto e pelo teatro. Mais que isso, tornou-se célebre nas últimas décadas, por declarações polêmicas, muitas vezes irônicas, quase sempre dirigidas à igreja, ateu e comunista que foi. Agora, como mais ou menos disse, pela voz de papel do seu Camões-personagem, tudo enfim que nos resta (e isso não é nada pouco), são papeis...
Fui aos papeis, aos meus livros anotados e encontrei palavras que, essas sim, exprimem parte do que pode ser dito por elas. As palavras do escritor...

Quem sabe se a cegueira não seria preferível à visão agudíssima do falcão instalada em órbitas humanas?” (Manual de Caligrafia e Pintura, 1977)

As palavras não dizem tudo quanto é preciso” (“São Asas”, em: Deste Mundo e do outro, 1971)

Deveria isto bastar, dizer de alguém como se chama e esperar o resto da vida para saber quem é, se alguma vez o saberemos, pois ser não é ter sido, ter sido não é será... (Memorial do Convento, 1982).

Além da conversa das mulheres, são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita (Memorial do Convento, 1982)

Mas são também os sonhos que fazem uma coroa de luas, por isso o céu é o resplendor que há na cabeça dos homens, se não é a cabeça dos homens o próprio e único céu (Memorial do Convento, 1982)

“... a morte é a suma razão de todas as coisas e sua infalível conclusão, a nós o que nos ilude é esta linha de vivos em que estamos, que avança para isso a que chamamos futuro só porque algum nome lhe havíamos de dar, colhendo dele incessantemente os seres velhos a que tivemos de dar o nome de mortos para que não saiam do passado” (A jangada de pedra, 1986)

Mas é na última frase, do último livro publicado, Caim, que lemos: “A história acabou, não haverá nada mais que contar.” Não. A história não acabou, nem para nós, leitores, nem para o escritor, que não passará (nem passarinho!). O que talvez Saramago tenha legado aos futuros escritores é o desafio de dizer, dizer sempre. Seja por meio de um estilo inovador, como foi o seu, sobretudo na prosa, seja pelas formas mais convencionais. Porque a própria vida é o manancial de histórias a serem contadas e recontadas.
E aqui, do lado de cá do oceano, onde também floresce a cada dia a nossa língua portuguesa, aqui, onde nem o mar acaba, nem a terra principia, “...acaba-se a exaltação, fica a melancolia” (Memorial do Convento, 1982).

Seropédica, RJ, 23 de junho de 2010.

2 comentários:

Anônimo disse...

Cláudio,
Lido e achado conforme assino por baixo.
Muito obrigado querido amigo pelas belas palavras!
Abraço apertado
Quim

Michelle Rolim disse...

Foi ótimo relembrar a leitura destes recortes, Cláudio. Abç.