Já meio ultrapassado, o tema me voltou à mente hoje, depois que recebi um email apontando o problema ortográfico que está estempado na capa de O Globo de hoje: http://pixhost.info/pictures/1844640
A polêmica sobre o livro didático que supostamente ensina o erro... Segue abaixo um pequeno texto meu, postado no ICHS em foco (http://ichsemfoco.blogspot.com/p/opiniao.html), blog do instituto em que trabalho, na UFRRJ:
Cabe hoje ao jornal muito mais informar que noticiar, ainda que muitas vezes informe noticiando. É que pela internet, em tempo real, fica-se sabendo o que aconteceu, acessando-se páginas de notícias de qualquer parte do mundo, com muito mais eficiência que qualquer jornal impresso. Imaginem a cobertura de um conflito, como uma Segunda Grande Guerra, com cobertura on-line, 24 horas por dia...
A questão é que, se a internet rouba ao jornal sua missão primeira de noticiar, ela também abriga inúmeras possibilidades para o debate de ideias. O melhor exemplo talvez seja o espaço reservado ao fim de cada matéria para que o leitor opine. Juntem-se a isso as inúmeras redes de relacionamento disponíveis, entre outros meios de divulgação on-line, e perceberemos que são a simultaneidade e a velocidade duas das mais contundentes e contemporâneas características da web.
Essa já extensa preleção prepara o meu espírito para um breve comentário a respeito de uma polêmica que, como praticamente tudo no nosso tempo, mal aparece e já é relegada a segundo plano. Não sei como tudo começou, mas acredito que foi a partir de uma pequena notícia de que o MEC gastou dinheiro para comprar e adotar um livro que ensina erros de Português. Erro de português para mim, que me dedico a literatura, foi o que fizeram nossos antepassados lusos: em vez de se despirem, vestiram os índios, como bem escreveu em versos Oswald de Andrade há quase cem anos. Entre “tupy” ou “not tupy”, ficamos com a segunda opção. Se tivéssemos aceitado a primeira, o MEC certamente seria acusado hoje de querer ensinar erros de tupi-guarani...
Talvez na ânsia de verem suas opiniões publicadas, gente famosa, seja por seu efetivo valor acadêmico, seja porque estejam inseridos na máquina publicitária dos grandes grupos editoriais, esbravejaram por escrito. O mesmo caminho seguiu o senso comum, nas inúmeras “correntes cibernéticas” de indignação. O que fica claro é que, pela argumentação (coerente ou caótica) desses textos, há sempre o mesmo equívoco: a falta de leitura. Um dos últimos artigos que li a esse respeito foi do poeta Ferreira Gullar (já nem me lembro onde). Ele, pelo menos, assume, no fim do texto, que não leu o capítulo do referido livro... Eu então me pergunto: o que leva as pessoas a emitirem opinião sobre o que não leram e que, na maior parte dos casos, nem mesmo é de seu conhecimento específico? Pior: por que elas fazem isso sem ao menos tentar se informar? Faço tais perguntas por ter lido muito insistentes repetições de informações que não procedem. Exemplo: “o MEC adotou o livro”. O MEC não adota livros, apenas os recomenda e compra para as escolas que escolherem a obra recomendada. O livro ensina a escrever/falar errado? Valoriza o erro em detrimento do acerto? Uma leitura superficial do primeiro capítulo do tal material didático mostra que não. O texto aborda de forma até bastante tradicional vários itens da gramática portuguesa... Certo ou errado são conceitos que há décadas não se aplicam aos estudos de expressão linguística, pelo simples fato de que há muitas situações em que variantes regionais, diastráticas ou diafásicas são mais adequadas do que a variante padrão, para o efetivo estabelecimento do processo comunicativo.
Por acaso isso quer dizer que se deve valorizar o desvio em relação ao padrão culto da língua no ensino? Claro que não. Qualquer professor de Português sabe que a sua disciplina tem por alvo maior o trabalho exaustivo com uma das possibilidades de variação, justamente a norma culta da língua. Isso também não quer dizer que seja possível ou produtivo lidar com a língua padrão negligenciando as diversas possibilidades expressivas. A questão me parece é que quem opina sem conhecimento de causa não tem como avaliar que há uma abismal diferença entre o português que, por exemplo, crianças como os meus filhos falam em casa ou na rua desde que nasceram e aquele utilizado por crianças carentes. Eles aprenderam a falar em uma família que há três gerações pelo menos teve acesso à escola, tendo alguns de seus ascendentes completado o ensino superior. A relação que eles têm com o nosso idioma, na variante padrão trabalhada na escola, é muito mais natural do que a de um garoto cuja família (há família?) nunca teve oportunidade de ter uma escolaridade mínima. A relação que crianças como essas, ainda maioria no Brasil, estabelecem com o português padrão é comparável com a que pessoas como eu ou os meus filhos estabelecemos ao aprender uma língua estrangeira. Talvez eles tenham até mais dificuldades, devido à evidente proximidade entre a norma culta e a popular. Se o aluno, por sua vez, for jovem ou adulto, o processo de aprendizado do padrão é ainda mais dificultoso...
Independente de qualquer outro aspecto, o que me parece que ficou de fora desse debate é que escrever bem não é apenas redigir textos sem equívocos ortográficos ou de concordância, por exemplo. Um texto claro envolve, no seu processo de elaboração, uma complexidade de operações linguísticas muito mais ampla. Desenvolver esse tipo de competência no uso falado ou escrito da língua, dentro da norma culta, é que é tarefa árdua, até para os que adquiriram a língua materna na sua variante padrão. Ensinar o idioma materno na escola vai muito além de simplesmente decorar ortografia, bem ao gosto dos soletrandos televisivos. É um processo denso, uma via de mão dupla entre leitura em diversos níveis de complexidade e práticas de escrita. Só assim o texto pode ser produzido com informatividade, clareza e adequação ao padrão. É algo tão problemático que, mesmo escolas de alto nível das mais desenvolvidas cidades brasileiras, devolvem à sociedade, após doze anos de ensino fundamental e médio, jovens que não conseguem se expressar minimamente por escrito. Como poderão ser considerados leitores (ainda que incipientes) da sociedade em que vivem?